A presente iconografia da Santíssima Trindade, tem como inspiração o texto bíblico do capítulo 18, do Livro Gênesis, conhecido como a aparição de Mambré. Neste texto, nosso Pai na fé, Abraão recebe a visita de Deus, através de três homens misteriosos (Gn 18, 1-16). Abraão reconhece neles esta presença, se prostrando diante deles e referindo aos três homens como uma única pessoa: “Meu senhor, eu te peço, se encontrei graça a teus olhos, não passes junto de teu servo sem te deteres” (Gn 18, 3).
Toda a trama do texto bíblico orbita em torno da acolhida. De fato, Abraão se encontrava à porta da tenda no maior calor do dia, quando se deparou com os personagens misteriosos, e, imediatamente, começou a servi-los: “Traga-se um pouco de água, e vos lavareis os pés, e vos estendereis sobre a árvore. Trarei um pedaço de pão e vos reconfortareis o coração antes de irdes para mais longe; foi para isso que passastes junto do vosso servo”(Gn 18, 5).
Logo depois, Abraão correu para junto de Sarah, sua esposa, que estava na tenda e lhe disse: “Toma depressa três medidas de farinha, de flor de farinha, amassa-as e faze pães cozidos. Depois correu Abraão ao rebanho e tomou um vitelo tenro e bom; deu-o ao servo que se apressou em prepará-lo. Tomou também uma coalhada, leite e o vitelo que preparara e colocou tudo diante deles; permaneceu de pé, junto deles, sob a árvore, e eles comeram” (Gn 18, 6-8).
Da acolhida de Abraão veio-lhe a bênção de Deus, e ele se tornou o mensageiro da promessa. De fato, Abraão e Sarah, sua esposa, eram idosos e sem filhos, motivo de grande tristeza para eles, pois era quase uma maldição não gerar uma descendência. Mas Deus que passara à porta de sua tenda lhe disse: “Voltarei a ti no próximo ano; então tua mulher Sarah terá um filho” (Gn 18, 10). De Abraão e Sarah nasceu Isaac, o filho da promessa. Foi a respeito dele que Deus fez a seguinte promessa a Abraão por causa de sua obediência: “Juro por mim mesmo, palavra do Senhor Deus: porque me fizeste isso, porque não me recusaste teu filho, teu único, eu te cumularei de bênçãos, eu te darei uma posteridade tão numerosa quanto as estrelas do céu e quanto a areia que está na praia do mar, e tua posteridade conquistará a porta de seus inimigos. Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra, porque tu me obedeceste” (Gn 22, 17-18).
Somente porque Deus se encarnou em Jesus Cristo, ou seja, assumiu nossa carne, nossa humanidade, é possível então pintarmos a sua imagem como foi definido no Concílio de Niceia II, em 787. Porém, não se trata de pintar a imagem da humanidade de Jesus, mas sim, a imagem do Logos de Deus, a imagem da fé que nós professamos em sua pessoa divino e humana.
Por isso, a imagem da Santíssima Trindade no ícone tem o rosto de Cristo, pois como Ele mesmo disse a Felipe: Quem me vê, vê o Pai, pois eu e o Pai somos um (Jo 14, 9-10).
A Santíssima Trindade se encontra representada na parte superior do ícone, sentada à mesa onde Abraão e Sarah juntamente com Isaac na parte inferior oferecem a Deus os alimentos para o banquete. É necessário entender que existe uma correspondência entre as seis figuras no ícone. Abraão se encontra em relação à figura do Pai, Isaac, que carrega a lenha do seu sacrifício, está relacionado a Jesus Cristo, o Filho de Deus, pois a figura de Isaac, no Antigo Testamento, é Typos da figura e da vida de Cristo, de seu sacrifício na Cruz no Novo Testamento. Já a figura de Sarah se encontra em correspondência com a imagem do Espírito Santo, uma vez que a palavra espírito em hebraico é feminina (Ruah).
É interessante perceber que a mesa em que a Trindade se encontra assentada é constituída pelas estrelas do céu e as areias da praia do mar, recordando que somente em Cristo se cumprem todas as promessas e profecias do Antigo Testamento, n’Ele se cumpre a passagem do deserto e a verdadeira travessia, a passagem do mar vermelho para a terra prometida aonde correm leite e mel, pois, por meio de sua entrega, o madeiro da Cruz, simbolizado pela lenha nos braços de Isaac, se tornou a ponte, a escada que levou a humanidade inteira a adentrar novamente no Reino de Deus Pai.
Deste modo, depreendemos que não mais através do leite, do pão e do cordeiro outrora oferecidos por Abraão aos três homens misteriosos, nós somos alimentados, mas sim, através do único e verdadeiro cordeiro, Cristo Jesus, que nos alimenta com o pão que é o seu Corpo e o vinho que é o seu sangue. Esta mesa, que forma ainda uma grande hóstia, trata-se do pão eucarístico, constituído da vida e da existência humana, que oferecida como dom em cada Eucaristia, é encharcada da vida de Deus. Pois o pão e o vinho que oferecemos são frutos da nossa terra e do nosso trabalho humano.
Somente através da Eucaristia, celebrada e vivida no solo da vida, no caminho da nossa existência, ou seja, na horizontalidade da vida, onde encontramos os nossos irmãos e irmãs, é que nós, cristãos, homens e mulheres de fé, chegaremos a vivenciar, verdadeiramente, o abraço pericorético em que se encontra representada a Santíssima Trindade. Somente quando acolhemos a alteridade do outro no amor é que a realidade da comunhão trinitária, que vivenciamos na Celebração eucarística, se torna concreta, real. Pois não se trata de uma comunhão psicológica, ideológica, imposta, mas se trata de reconhecer a presença do mistério reverente de Deus em cada ser humano, do qual a carne, Deus em Cristo Jesus assumiu e redimiu. Não impondo uma uniformidade como forma de comunhão, o que seria arbitrário, mas acolhendo a diversidade para que todos fizessem a escolha livre e consciente de acolher o amor do Pai que n’Ele, Cristo Jesus, fez de todos nós irmãos e irmãs.
A Santíssima Trindade, segundo os Padres da Igreja, é o mistério de três pessoas que, na sua adesão recíproca, têm o seu fundamento no amor do Pai e formam uma unidade absoluta, um só Deus. Assim, esta comunhão entre as pessoas divinas releva a identidade de cada uma delas através sua relação com aquela relação fundante com o Pai.
Contemplando o Mistério da Santíssima Trindade, enquanto visão, depreendemos que a pessoa humana não pode ser reduzida meramente à sua natureza segundo uma lógica necessária e casual que exclui a liberdade, no sentido de que conhecendo a natureza de uma pessoa se conhece a todas as outras.
Para a pessoa humana tal logica não funciona, uma vez que, partindo da comunhão trinitária, da relação no amor, não encontramos indivíduos que são racionalmente conhecidos, mas pessoas que são um mistério que se releva para serem conhecidas. Deste modo, a mentalidade condicionada a qual estamos habituados em nossa cultura sobre a dinâmica entre indivíduo e natureza é distinta da dinâmica existente entre pessoa e comunhão.
Que a Santíssima Trindade nos ajude a viver nossas relações humanas, alicerçados na vida d’Aquele que se fazendo homem, no seu Mistério Pascal, abriu-nos as portas da eternidade, de modo que o Pai-nosso, que rezamos em cada Eucaristia, nos ajude a comunicar às pessoas do nosso tempo que o nosso Deus é Pai, e que somente no seu Filho Jesus Cristo, pela ação do Espírito Santo, podemos encurtar as distâncias entre nós, reconhecendo na carne de Cristo suspensa na Cruz e glorificada no céus, nossa própria carne, uma única humanidade vocacionada n’Ele a viver a fraternidade divino e humana de modo universal.
Pe. Mateus Lopes
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